domingo, 20 de fevereiro de 2011

Os intelectuais e o dever da cidadania

Por Mabel Machado
As transformações políticas e mesmo ideológicas ocorridas na última década na America Latina colocam novos desafios aos intelectuais, aos escritores em particular, dessa região. É o que pensa e afirma o escritor equatoriano Raúl Vallejo nesta entrevista realizada pela jornalista cubana Mabel Machado para a Revista Cubana de Cultura La Jiribilla. "Os intelectuais e os escritores, em particular, têm a responsabilidade de assumir seus deveres de cidadania. Assumir deveres que têm a ver com a ampliação das liberdades democráticas, com a construção de sociedades mais justas, mais solidárias", diz Vallejo.
“O destino da palavra literária é sempre o da irreverência”. Assim se apresenta em seu portal da web o escritor e intelectual equatoriano Raúl Vallejo, que esteve em Cuba para participar da última Feira Internacional do Livro.

Em seu país este escritor tem ocupado diferentes cargos públicos, tendo sido Diretor da Campanha de Alfabetização e três vezes Ministro da Educação. E a partir desses cargos empreendeu projetos inovadores de grande repercussão social, como a vitória de sua proposta para transformar temas educativos em política de estado, respaldada em referendo popular por mais de 80% dos equatorianos.

Desde fevereiro de 2011, Vallejo assumiu o posto de embaixador de seu país na Colômbia, porém os cargos diplomáticos não o separam de uma carreira literária que se iniciou como contista na década de 70 com o livro “Cuento Cuento” (1976), e que em 1992 recebe o Prêmio 70 Anos do Diário ‘El Universo’ pelo livro de relatos “Fiesta de Solitários”. Recebe em 1999 os prêmios Joaquim Gallegos Lara e o Nacional do Livro pela obra “Acoso Textual”. No ano 2000 é galardoado com o prêmio Aurélio Espinosa Pólit pela obra “Huellas de amor eterno”, tendo incursionado também pela poesia com textos como “Cánticos para Oriana” e “Crónica del mestizo”

Em uma de suas apresentações diante do público leitor e de profissionais do livro na Feira de Havana, Raúl Vallejo, cuja obra está publicada em Cuba, discorreu sobre a literatura latino americana do século XIX e a projeção dos intelectuais da época sobre os temas de pátria e amor.

Segundo suas investigações no campo da narrativa, os autores do continente, tomados pelo espírito romântico, mostram-se interessados em construir em sentido de pátria que, durante os processos de independência de seus países colocam em destaque a exaltação às ideias de progresso e ordem em oposição a barbárie, porém com reflexos de admiração pelos costumes populares.

Vallejo destacou como os romancistas, em geral, assumiram o ideário de “poetas civis”, o que ajudou a construir os estados e a literatura nacional, razão pela qual quase todos – “seres apaixonados que moldaram o espírito de cada nação” – são considerados patriotas.

Desde o Equador, Vallejo é integrante de uma vanguarda intelectual que hoje é protagonista de um dos processos políticos e culturais mais importantes do mundo: a reconfiguração das fronteiras ideológicas latino americanas. La Jiribilla procurou-o para conhecer seus pontos de vista sobre o novo processo emancipatório que se dá com a ascensão de governos populares no continente.

Em sua conferência você percorreu um caminho procurando mostrar o conceito de patriotismo na literatura latino americana do século XIX. Quanto se perdeu dessa noção de patriotismo do século XIX até os dias de hoje na literatura latino americana?
Raul Vallejo: O que acontece é que o patriotismo do século XIX está relacionado com a definição de um escritor civil, isto é, um escritor que participa ativamente do processo de construção da nação. Para esse escritor ou escritora, a pátria é um conceito que se precisa construir.

Durante o século XX, com os estados nacionais constituídos e com os poderes de dominação de fato já institucionalizados, o conceito de pátria se transforma em conceito de uma segunda independência, até o momento em que os ideais libertadores possam ser expressos como ideais que requerem uma realização plena e não apenas uma realização formal.

Contudo, como já se deu o processo de profissionalização dos escritores, a literatura se torna ainda receosa de receber em seus textos a idéia de patriotismo. Existe, assim, uma diferenciação entre a atitude do escritor e sua obra literária. Um exemplo clássico desse fenômeno é Cortazar. Em termos estritos, ele é um patriota, um lutador pelas liberdades. Porém sua obra, excetuando-se um ou dois textos como “Fantomas contra las transnacionais”, não introduz tais elementos de patriotismo na ficção.

O senhor fez alusão à responsabilidade dos intelectuais, segundo Gramsci, e também sobre a aplicação dessa responsabilidade na literatura do século XIX. Qual deve ser o conceito de responsabilidade intelectual no mundo contemporâneo e nos novos processos emancipatórios da América Latina?
Raúl Vallejo: Os intelectuais e os escritores, em particular, têm a responsabilidade de assumir seus deveres de cidadania. O que quero dizer com isso? Assumir deveres que têm a ver com a ampliação das liberdades democráticas, com a construção de sociedades mais justas, mais solidárias. Em outras palavras: ao assumir esses deveres, os intelectuais de hoje se assumem como parte dos processos emancipatórios e não como seus líderes, nem tampouco como messias desses processos. Essa função messiânica já não é mais propriedade dos intelectuais. Agora a função de liderança desses processos de libertação está dada aos movimentos populares.

Até que ponto as celebrações pelo bicentenário das independências em países da América Latina (1) podem contribuir para aprofundar a consciência sobre a necessidade de unidade e de repensar Nossa América como uma pátria grande?
Raúl Vallejo: As comemorações do bicentenário têm sido regidas pela idéia da necessidade de uma visão crítica sobre o que significou a independência. Apresentam como introdução ao tema duas perguntas: Os ideais de independência realmente se realizaram nesses duzentos anos? O que faltou ou o que ainda falta para que esses ideais tornem nossas pátrias realmente livres e não submetidas a processos neocoloniais. Por aí devem seguir encaminhando-se os debates.

(*) Raúl Vallejo é escritor e atual embaixador do Equador na Colômbia.

(1) Nas duas primeiras décadas do século XXI se comemoram os duzentos anos de independência do colonialismo espanhol de vários países latino americanos. 

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